A RONDA

 

 

 

 

                                                                                                                             

       RONDA é o processo de caça provavelmente mais desconhecido da maioria dos caçadores portugueses e, arriscar-me-ia a  dizer, que talvez também seja desconhecido de muitos dos nosso Monteiros. É um processo de caça maior requintado que por sua vez exige meios e recursos nem sempre disponíveis ou fáceis de manter. Para além disso, exige do caçador muito saber, coragem e uma vontade indómita de correr riscos.

      Trata-se de um processo de caça parecido com o método de salto, praticado com a ajuda de cães de caça maior, a cavalo, e como armas apenas se utilizam as armas brancas - a lança de ronda ou a faca de remate. Tanto se pode desenvolver de noite como de dia, apesar da  verdadeira tradição obrigar a que se realize  de noite quando as diferentes espécies de caça maior se encontram fora do mato, nas áreas abertas, mais descuidadas e desprevenidas.

       É, para além do mencionado, um processo de caça característico da Península Ibérica, tendo sido intensamente praticado por nobres e plebeus durante todo o século XIX.

      Como principal referência da realização das Rondas nocturnas sobre javalis e veados temos relatos extraordinários de um grande Monteiro que viveu nesse mesmo século - D. António Covarsi - o qual escreveu (diria ditou) as regras, procedimentos e códigos de conduta para a caça maior, regras e procedimentos estes que ainda hoje se seguem, apregoam e são cumpridos por todos os que desfrutam a Caça e a Natureza com respeito.

     As obras de Covarsi (Narraciones de Un Montero e Grandes Cacerias Españolas entre outras e para citar apenas as mais conhecidas) são consideradas, por aqueles que tiveram o privilégio de as conseguir (porque se encontram esgotadíssimas) e das ler, como uma verdadeira bíblia de caça maior. Os seus relatos são tão entusiasmantes que, quando os lê-mos, temos a sensação de estar ao seu lado acompanhando o lance.

      D. António era funcionário público com residência na cidade castelhana de Badajoz mas o seu espírito  estava nas serranias de Badajoz e Cáceres. Caçador apaixonado e Monteiro inveterado,  dedicava o todo o tempo disponível à caça maior. Caçava de Montaria (no tempo em que as montarias duravam semanas a fio batendo mancha após mancha, serrania após serrania), de espera,  de aproximação e de ronda; monteou na sua região mas também percorreu com as suas matilhas todo o território castelhano, caçando inclusivamente nos Pirinéus.

       Para se caçar de Ronda nocturna é fundamental os caçadores possuírem um cavalo bem treinado para este efeito, dócil e obediente, porque será um auxiliar fundamental e seguro nas deslocações de noite, dentro e fora do mato; não deve amedrontar-se com os ruídos da noite nem como a presença dos animais bravios.

      É igualmente fundamental possuir-se uma matilha de cães de caça maior bem treinada para esta forma de caça e que, contrariamente ao desejado para as montarias diurnas, cace em silêncio (afim de evitar que os animais se ponham de sobreaviso e fujam antes de tempo). Por outro lado devem ladrar quando acoitam as rezes, indicando com "ladra de parado" a localização do animal. Só desta forma é possível ao caçador saber onde se encontra o veado ou o javali e a matilha, para que este possa entrar a remate e cobrar o animal.

      E, tal como refere Covarsi, a arma ideal para este tipo de caça é a Faca de Remate ou a Lança de Ronda (denominada na Idade Média como Azcuma). As armas de fogo, para este efeito, são pouco práticas e inoperantes por ser de noite, por o animal estar rodeado de cães da matilha, porque se pode perder ou cair do cavalo quando se galopa para ao chamamento dos cães e porque frequentemente os lances acontecem dentro do mato, que é a fuga natural e a protecção das rezes.

     Como se caça então por este processo?

     Conhecendo a zona e sabendo que existem javalis e veados na região, procuram-se os locais onde há sinais de se alimentarem durante a noite. Depois de se avisar os residentes locais para que guardem (nessas noites) o seu gado - sob pena de este ser aniquilado pelas matilhas - escolhe-se uma noite  para caçar que pode ter ou não luar, e ser mais ou menos ventosa de acordo com o que se pretende (se houver luar é mais fácil entrar nos matos para rematar as rezes, devido aos obstáculos e perigos que o escuro encerra; se estiver ventosa, mas sem exagero, permite que os cães mais facilmente detectem e se acerquem dos animais a caçar).

     Aprazada a noite, soltam-se os cães (sempre com o "vento no focinho" para que possam bater o terreno), sendo estes acompanhados pelos respectivos caçadores que, para que a caçada tenha sucesso, não devem ser mais do que três ( muita gente junta, a cavalo, de noite precipitando-se para o local da ladra, só dá confusão e mau resultado).

     Quando a matilha der sinal de ter acoitado (agarrado ou cercado) um javali ou um veado (através da dita "ladra de parado") o caçador deverá dirigir-se rapidamente ao local, desmontar e entrar ao remate com a faca ou com a lança. Este caçador deverá ser o dono dos cães ou pelo menos uma pessoa a quem estes estejam habituados, sob pena de se poderem espantar ou se intimidarem com uma presença desconhecida e soltarem o bicho que, no caso de ser um javali ou um veado de grande porte, poderá carregar o caçador.

Terminal de Lança de Ronda que pode também ser usado como faca.

     Na sua obra "Narraciones de um Montero" , Covarsi descreve de forma pormenorizada como se caça de Ronda, apresentando-se aqui uma parte dessa descrição para que possa ser apreciada pelos nossos visitantes.

       Por tudo o que foi descrito, percebe-se que a Ronda não seja um processo de caça fácil ou sequer vulgar nos tempos modernos. Os terrenos propícios para este tipo de caça são cada vez menos (já não há terreno livre), nas zonas de caça ordenada os limites de cada território são impeditivos deste tipo de caça, e os meios exigidos para a sua prática são enormes e implicam uma avultada despesa de manutenção. Actualmente apenas se pratica de dia (e em condições semelhantes das originais), na maioria dos países da América do Sul e sobre o Javali; nestas regiões as zonas de caça são avassaladoramente grandes (com milhares de kilómetros quadrados de extensão e despovoadas de gente ou gados). Não havendo manchas florestais cerradas e sendo o coberto vegetal de média altura, torna-se fácil, de cima dos cavalos, descobrir os javalis nos seus locais de encame ou acoitá-los com a ajuda dos cães.

       A Ronda justificava-se no século XIX por haver milhares de hectares de terrenos públicos incultos e cobertos de mato, por não haver vias de comunicação terrestre e a maioria das pessoas ter de efectuar as sua deslocações  a cavalo ( logo muita gente possuía cavalos) e ainda porque era um processo quase oculto de se caçar sem que cada um soubesse o que os restantes matavam. Hoje caiu praticamente em desuso e o que mais se aproxima deste processo, são algumas (raras) batidas realizadas no Verão e sobre javalis, nas noites de luar, nas searas e sem cães : um, dois ou três caçadores colocam-se previamente e em silêncio numa extremidade da seara que confine com uma mancha de mato e do lado oposto entram dois ou três batedores que se vão deslocando e conversando uns com os outros. Os javalis quando sentem o rumor dentro da seara vão escapando lenta e calmamente do possível perigo, dirigindo-se para a mancha de mato. Quando saem da seara não se apercebem dos caçadores porque os seus sentidos estão direccionados para os batedores.

 

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